DANIEL DENNETT
Quebrando o encanto - a religião como fenômeno natural. Tradução Helena Londres. São Paulo: Editora Globo, 2006, 456 p.
O filósofo Daniel Dennett, já conhecido dos leitores brasileiros por suas obras A perigosa idéia de Darwin e Tipos de mentes, tem agora sua obra Quebrando o encanto traduzida no nosso idioma. Trata-se, sem dúvida, de um esforço meritório e de uma proposta ousada. O ponto a se destacar é que a obra tem como um de seus principais objetivos a abordagem do fenômeno religioso enquanto fenômeno natural. A fim de atingir sua meta, o autor opta por escrever um texto sem as características e sem a tradicional linguagem acadêmica. Seu intuito é atingir as pessoas comuns e suas concepções acerca da religião. A ousadia da proposta reside no fato de que mesmo falando sobre um tema de importância capital e com uma história gigantesca, o autor delimita bem o seu foco e objetivo. Em outras palavras, ele pretende tratar da religião dentro do monoteísmo, a saber, do cristianismo, do judaísmo e do islamismo. Além disso, fica absolutamente claro e assumido que seu texto é dirigido ao público norte-americano, devendo ser compreendido dentro desse contexto.
A escolha do público não é aleatória. Primeiramente, trata-se do lugar onde vive e trabalha o autor. Assim, ele parece escrever uma obra para um público e uma realidade que lhe é familiar. Além disso, notadamente no atual governo Bush e, com especial destaque após os atentados de 11 de Setembro, a temática da religião se fortaleceu muito. Há uma forte influência de grupos evangélicos conservadores ou fundamentalistas em todas as esferas da nação americana já há muito tempo. Contudo, no atual governo e na atual situação histórica, tais grupos adquiriram um peso maior, fazendo-se notar em propostas como a inclusão do ensino do criacionismo em escolas púbicas, nos protestos violentos contra o aborto e união de homossexuais e num estímulo crescente a um sentimento de guerra religiosa entre o cristianismo protestante norte-americano e sua democracia e os valores islâmicos e totalitários de alguns países muçulmanos. Nesse ambiente de guerra entre monoteísmos e do chamado retorno do sagrado, Dennet esboça sua análise do quadro e articula as suas propostas.
O filósofo é ligado aos estudos cognitivos e, portanto, seu interesse em estudar a temática da religião parece, num primeiro olhar, não costumeiro. Afinal, a religião é normalmente estudada por teólogos, cientistas da religião, cientistas sociais e alguns filósofos. Entretanto, parece mais raro que um estudioso dos assuntos cognitivos se interesse por tal temática. Outro ponto claramente assumido aqui por Dennett é sua filiação aos chamados brights (brilhantes), movimento que, em seu caráter geral, espelha uma reação contra os valores defendidos pelos religiosos norte-americanos e sua tentativa de controlar o poder público e o ensino laico. O filósofo assume claramente seu posicionamento ateísta e, a partir dele, tenta compreender alguns aspectos da religião.
O próprio título da obra evoca uma séria de reflexões. A palavra encanto utilizada por Dennet possui clara afinidade com rituais mágicos. Uma pessoa encantada ou enfeitiçada é alguém que não é capaz de decidir algo racionalmente ou que teve sua capacidade de julgar prejudicada. Muito antes de Dennett, Max Weber já havia abordado o fenômeno do desencantamento do mundo e julgou que o protestantismo, por exemplo, dado a sua racionalidade, seria a última morada do sagrado. Freud, no Futuro de uma ilusão, descrevera a religião como patologia psíquica. Aliás, tal diagnóstico já pode ser observado em autores que o antecederam como Feuerbach, Nietzsche e Marx.
A novidade da análise de Dennett reside no fato de que ele busca compreender a religião como fenômeno natural, tal como é enunciado no próprio subtítulo da obra. Nesse aspecto, há uma certa aproximação de sua análise com Hume, notadamente na sua obra História natural da religião e também com as concepções de Darwin, já exploradas amplamente por Dennet na sua obra anterior (A perigosa idéia de Darwin), mas retomadas aqui, ao menos em suas linhas gerais.
O livro divide-se em três partes, possui quatro apêndices (A,B,C,D) e um número considerável de notas finais. A primeira parte é curiosamente intitulada a abertura da caixa de Pandora. Seu objetivo é demonstrar como o encanto produzido pela religião pode comprometer a vida das pessoas e da sociedade. Trata-se de um alerta contra o pior produzido pela religião: fanatismo, intolerância e perda da autonomia individual. No entender do autor, tudo aquilo que a religião apresenta de forma misteriosa e sem maiores explicações pode ser estudado pela ciência. Dennett questiona aqui a tradicional divisão entre as Naturwissenschaften (ciências da natureza) e as Gesteswissenschaften (ciências do espírito). A religião parece que é sempre estudado pelo segundo tipo de ciência e jamais pode ser analisada através das ciências da natureza. Segundo o autor, desde Darwin, tal distinção não faz mais sentido e precisa ser revista. As coisas boas, que a religião se diz capaz de explicar, podem ser claramente explicitadas pela ciência.
Na parte dois, intitulada a evolução da religião, o autor busca explorar como a religião possui um conjunto de razões para que possa ser compartilhada por todos. No seu entender, tal coisa é sintomática. Significa que toda religião é um passo adiante de explicações mitológicas e, a medida em que ela se organiza, necessita de razões. Nesse mesmo espírito, Dennett observa aquilo que ele denomina como os primeiros dias da religião. Em outras palavras, a religião não surgiu do nada ou desabou sobre a humanidade, antes foi construída e, seguindo novamente os passos de Darwin, também ela é fruto do processo evolutivo do homem. O autor também descarta aqui uma explicação costumeiramente fornecida pelos estudiosos da religião ou por teólogos: a crença na crença. Desde os primeiros pais da Igreja até muitos dos estudiosos atuais da religião, toma-se o sagrado como algo que possui uma esfera própria e uma lógica que lhe é peculiar. Dennett não aceita tal argumentação, julgando-a falaciosa. No entender do autor, tal coisa não passa de um delimitador da razão.
A religião hoje é o título da terceira parte do livro. Dennett defende abertamente aqui que o leitor seja esclarecido, na qualidade de consumidor das religiões, qual produto ou serviço ele está adquirindo. A despeito de sua ironia, trata-se, sem dúvida, de um conselho útil. O consumidor da religião hoje deve ser informado sobre os benefícios e sobre os possíveis malefícios de sua escolha. Com efeito, as religiões não podem prometer aquilo que não são capazes de cumprir e nem devem tentar vender seus produtos de forma científica ou lhes fornecer uma roupagem de tal natureza. Aqui Dennett lança uma curiosa pergunta: é possível ser ético sem ser religioso? Tal questão é, sem dúvida alguma, profunda e já recebeu inúmeros debates filosóficos em autores como Kant, Schopenhauer e Nietzsche. No entender do autor, o agir moral de cada um de nós está plenamente ligado com a nossa capacidade humana e com a nossa autonomia, não precisando de nenhuma outra esfera que nos forneça tal suporte. Contudo, é evidente, segundo o autor, que devemos reconhecer o grande número de pessoas religiosas que praticam o bem.
Há aqui um curioso apelo de Dennett: ele convoca os líderes religiosos para que esclareçam os seus seguidores sobre a importância de uma convivência pacífica e sobre os limites das religiões no mundo atual. Enfim, a obra termina espelhando um pouco da atual aporia da situação religiosa no mundo e, em particular, nos Estados Unidos. Não se trata, portanto, de uma obra meramente contra a religião, mas de uma tentativa de compreendê-la como fenômeno natural. No entender do seu autor, as pessoas que julgarem necessário ter uma religião devem assim proceder, mas precisam ser alertadas sobre alguns de seus equívocos. Num tempo onde a tônica tem sido uma espécie de tolerância relativista, a tese de Dennett é polêmica. Contudo, é plenamente compreensível num país como os Estados Unidos, onde os cientistas tem sido objeto de críticas fundamentalistas e onde a esfera laica parece perder a cada dia o seu lugar. O próprio Dennet confessa, no início da obra, que conviveu com pessoas religiosas em seus seminários de estudo, servindo-se das suas concepções para a feitura desse livro. Todavia, não se trata de um diálogo que termina num relativismo ou numa tolerância forçada, antes serve como suporte para aprofundar as idéias do autor sobre a religião.
No apêndice A, denominado os novos replicadores, Dennett retoma alguns dos pontos da teoria darwiniana para explicar a religião. Já no apêndice B, intitulado mais algumas questões a respeito de ciência, tal como promete o título, retoma algumas investigações científicas. Por fim, os dois últimos apêndices (C e D) possuem títulos curiosos: O mensageiro e a dama chamada Tuck e Kim Philby como um caso real de indeterminação de interpretação radical, respectivamente. O primeiro trata de experimentos biológicos com macacos, aplicando-os a uma dada interpretação da evolução religiosa, o segundo trata de alguns pontos da filosofia de Quine aplicadas ao fenômeno religioso.
A tradução e a edição da obra de Dennett no Brasil possuem alguns pequenos erros: na página 45 há uma referência ao Flamengo e ao Corinthians. Ainda que possamos supor o interesse do autor no futebol brasileiro, é pouco provável que ele utilizou as duas equipes no seu exemplo. Aqui a tradutora se deu ao direito de simplesmente comparar livremente algo que poderia ser mais facilmente assimilado ao leitor brasileiro por analogia. Tal coisa nunca deve ser feita numa tradução, que deve procurar ser fiel ao texto, mas sim em alguma nota explicativa da tradutora no pé da página. Há também um erro grosseiro no sumário, onde a parte dois é seguida da parte dois, quando o correto seria a parte três. Nas indicações bibliográficas, somente a tradução de Dennett (A perigosa idéia de Darwin) é citada, enquanto muitas obras elencadas pelo autor, em inglês, mas disponíveis em traduções brasileiras, são omitidas. Uma pesquisa elementar evitaria tal erro e forneceria um melhor suporte ao leitor de língua portuguesa.
A despeito dessas pequenas falhas editoriais, trata-se, sem dúvida, de uma obra importante para o debate religioso atual. Pode-se questioná-la, mas não devemos desmerecê-la. Trata-se de uma dada visão norte-americana, cognitiva e biológica sobre o fenômeno religioso, costumeiramente estudado por teólogos, cientistas sociais e filósofos europeus de diferentes escolas. As teses de Dennett são opostas, por exemplo, ao idealismo hegeliano e sua tradição interpretativa, possuindo maiores afinidades com a interpretação de Hume. Suas teses também se opõem a autores clássicos do campo religioso como Mircea Eliade e Rudolf Otto, que privilegiam o sagrado e sua linguagem específica. Entre os atuais estudos sobre a religião no mundo contemporâneo, poderíamos opor a visão de Dennett com a de Karen Armstrong, que busca compreender o monoteísmo por uma perspectiva histórica, e com Gianni Vattimo, defensor do pensamento pós-moderno na religião e do chamado pensamento pós-metafísico ou fraco, claramente influenciado por Nietzsche e Heidegger.
A escolha do público não é aleatória. Primeiramente, trata-se do lugar onde vive e trabalha o autor. Assim, ele parece escrever uma obra para um público e uma realidade que lhe é familiar. Além disso, notadamente no atual governo Bush e, com especial destaque após os atentados de 11 de Setembro, a temática da religião se fortaleceu muito. Há uma forte influência de grupos evangélicos conservadores ou fundamentalistas em todas as esferas da nação americana já há muito tempo. Contudo, no atual governo e na atual situação histórica, tais grupos adquiriram um peso maior, fazendo-se notar em propostas como a inclusão do ensino do criacionismo em escolas púbicas, nos protestos violentos contra o aborto e união de homossexuais e num estímulo crescente a um sentimento de guerra religiosa entre o cristianismo protestante norte-americano e sua democracia e os valores islâmicos e totalitários de alguns países muçulmanos. Nesse ambiente de guerra entre monoteísmos e do chamado retorno do sagrado, Dennet esboça sua análise do quadro e articula as suas propostas.
O filósofo é ligado aos estudos cognitivos e, portanto, seu interesse em estudar a temática da religião parece, num primeiro olhar, não costumeiro. Afinal, a religião é normalmente estudada por teólogos, cientistas da religião, cientistas sociais e alguns filósofos. Entretanto, parece mais raro que um estudioso dos assuntos cognitivos se interesse por tal temática. Outro ponto claramente assumido aqui por Dennett é sua filiação aos chamados brights (brilhantes), movimento que, em seu caráter geral, espelha uma reação contra os valores defendidos pelos religiosos norte-americanos e sua tentativa de controlar o poder público e o ensino laico. O filósofo assume claramente seu posicionamento ateísta e, a partir dele, tenta compreender alguns aspectos da religião.
O próprio título da obra evoca uma séria de reflexões. A palavra encanto utilizada por Dennet possui clara afinidade com rituais mágicos. Uma pessoa encantada ou enfeitiçada é alguém que não é capaz de decidir algo racionalmente ou que teve sua capacidade de julgar prejudicada. Muito antes de Dennett, Max Weber já havia abordado o fenômeno do desencantamento do mundo e julgou que o protestantismo, por exemplo, dado a sua racionalidade, seria a última morada do sagrado. Freud, no Futuro de uma ilusão, descrevera a religião como patologia psíquica. Aliás, tal diagnóstico já pode ser observado em autores que o antecederam como Feuerbach, Nietzsche e Marx.
A novidade da análise de Dennett reside no fato de que ele busca compreender a religião como fenômeno natural, tal como é enunciado no próprio subtítulo da obra. Nesse aspecto, há uma certa aproximação de sua análise com Hume, notadamente na sua obra História natural da religião e também com as concepções de Darwin, já exploradas amplamente por Dennet na sua obra anterior (A perigosa idéia de Darwin), mas retomadas aqui, ao menos em suas linhas gerais.
O livro divide-se em três partes, possui quatro apêndices (A,B,C,D) e um número considerável de notas finais. A primeira parte é curiosamente intitulada a abertura da caixa de Pandora. Seu objetivo é demonstrar como o encanto produzido pela religião pode comprometer a vida das pessoas e da sociedade. Trata-se de um alerta contra o pior produzido pela religião: fanatismo, intolerância e perda da autonomia individual. No entender do autor, tudo aquilo que a religião apresenta de forma misteriosa e sem maiores explicações pode ser estudado pela ciência. Dennett questiona aqui a tradicional divisão entre as Naturwissenschaften (ciências da natureza) e as Gesteswissenschaften (ciências do espírito). A religião parece que é sempre estudado pelo segundo tipo de ciência e jamais pode ser analisada através das ciências da natureza. Segundo o autor, desde Darwin, tal distinção não faz mais sentido e precisa ser revista. As coisas boas, que a religião se diz capaz de explicar, podem ser claramente explicitadas pela ciência.
Na parte dois, intitulada a evolução da religião, o autor busca explorar como a religião possui um conjunto de razões para que possa ser compartilhada por todos. No seu entender, tal coisa é sintomática. Significa que toda religião é um passo adiante de explicações mitológicas e, a medida em que ela se organiza, necessita de razões. Nesse mesmo espírito, Dennett observa aquilo que ele denomina como os primeiros dias da religião. Em outras palavras, a religião não surgiu do nada ou desabou sobre a humanidade, antes foi construída e, seguindo novamente os passos de Darwin, também ela é fruto do processo evolutivo do homem. O autor também descarta aqui uma explicação costumeiramente fornecida pelos estudiosos da religião ou por teólogos: a crença na crença. Desde os primeiros pais da Igreja até muitos dos estudiosos atuais da religião, toma-se o sagrado como algo que possui uma esfera própria e uma lógica que lhe é peculiar. Dennett não aceita tal argumentação, julgando-a falaciosa. No entender do autor, tal coisa não passa de um delimitador da razão.
A religião hoje é o título da terceira parte do livro. Dennett defende abertamente aqui que o leitor seja esclarecido, na qualidade de consumidor das religiões, qual produto ou serviço ele está adquirindo. A despeito de sua ironia, trata-se, sem dúvida, de um conselho útil. O consumidor da religião hoje deve ser informado sobre os benefícios e sobre os possíveis malefícios de sua escolha. Com efeito, as religiões não podem prometer aquilo que não são capazes de cumprir e nem devem tentar vender seus produtos de forma científica ou lhes fornecer uma roupagem de tal natureza. Aqui Dennett lança uma curiosa pergunta: é possível ser ético sem ser religioso? Tal questão é, sem dúvida alguma, profunda e já recebeu inúmeros debates filosóficos em autores como Kant, Schopenhauer e Nietzsche. No entender do autor, o agir moral de cada um de nós está plenamente ligado com a nossa capacidade humana e com a nossa autonomia, não precisando de nenhuma outra esfera que nos forneça tal suporte. Contudo, é evidente, segundo o autor, que devemos reconhecer o grande número de pessoas religiosas que praticam o bem.
Há aqui um curioso apelo de Dennett: ele convoca os líderes religiosos para que esclareçam os seus seguidores sobre a importância de uma convivência pacífica e sobre os limites das religiões no mundo atual. Enfim, a obra termina espelhando um pouco da atual aporia da situação religiosa no mundo e, em particular, nos Estados Unidos. Não se trata, portanto, de uma obra meramente contra a religião, mas de uma tentativa de compreendê-la como fenômeno natural. No entender do seu autor, as pessoas que julgarem necessário ter uma religião devem assim proceder, mas precisam ser alertadas sobre alguns de seus equívocos. Num tempo onde a tônica tem sido uma espécie de tolerância relativista, a tese de Dennett é polêmica. Contudo, é plenamente compreensível num país como os Estados Unidos, onde os cientistas tem sido objeto de críticas fundamentalistas e onde a esfera laica parece perder a cada dia o seu lugar. O próprio Dennet confessa, no início da obra, que conviveu com pessoas religiosas em seus seminários de estudo, servindo-se das suas concepções para a feitura desse livro. Todavia, não se trata de um diálogo que termina num relativismo ou numa tolerância forçada, antes serve como suporte para aprofundar as idéias do autor sobre a religião.
No apêndice A, denominado os novos replicadores, Dennett retoma alguns dos pontos da teoria darwiniana para explicar a religião. Já no apêndice B, intitulado mais algumas questões a respeito de ciência, tal como promete o título, retoma algumas investigações científicas. Por fim, os dois últimos apêndices (C e D) possuem títulos curiosos: O mensageiro e a dama chamada Tuck e Kim Philby como um caso real de indeterminação de interpretação radical, respectivamente. O primeiro trata de experimentos biológicos com macacos, aplicando-os a uma dada interpretação da evolução religiosa, o segundo trata de alguns pontos da filosofia de Quine aplicadas ao fenômeno religioso.
A tradução e a edição da obra de Dennett no Brasil possuem alguns pequenos erros: na página 45 há uma referência ao Flamengo e ao Corinthians. Ainda que possamos supor o interesse do autor no futebol brasileiro, é pouco provável que ele utilizou as duas equipes no seu exemplo. Aqui a tradutora se deu ao direito de simplesmente comparar livremente algo que poderia ser mais facilmente assimilado ao leitor brasileiro por analogia. Tal coisa nunca deve ser feita numa tradução, que deve procurar ser fiel ao texto, mas sim em alguma nota explicativa da tradutora no pé da página. Há também um erro grosseiro no sumário, onde a parte dois é seguida da parte dois, quando o correto seria a parte três. Nas indicações bibliográficas, somente a tradução de Dennett (A perigosa idéia de Darwin) é citada, enquanto muitas obras elencadas pelo autor, em inglês, mas disponíveis em traduções brasileiras, são omitidas. Uma pesquisa elementar evitaria tal erro e forneceria um melhor suporte ao leitor de língua portuguesa.
A despeito dessas pequenas falhas editoriais, trata-se, sem dúvida, de uma obra importante para o debate religioso atual. Pode-se questioná-la, mas não devemos desmerecê-la. Trata-se de uma dada visão norte-americana, cognitiva e biológica sobre o fenômeno religioso, costumeiramente estudado por teólogos, cientistas sociais e filósofos europeus de diferentes escolas. As teses de Dennett são opostas, por exemplo, ao idealismo hegeliano e sua tradição interpretativa, possuindo maiores afinidades com a interpretação de Hume. Suas teses também se opõem a autores clássicos do campo religioso como Mircea Eliade e Rudolf Otto, que privilegiam o sagrado e sua linguagem específica. Entre os atuais estudos sobre a religião no mundo contemporâneo, poderíamos opor a visão de Dennett com a de Karen Armstrong, que busca compreender o monoteísmo por uma perspectiva histórica, e com Gianni Vattimo, defensor do pensamento pós-moderno na religião e do chamado pensamento pós-metafísico ou fraco, claramente influenciado por Nietzsche e Heidegger.
Marcio Gimenes de Paula, doutor em Filosofia pela UNICAMP, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe, pesquisador na área de Ética e Filosofia da Religião, autor da obra Socratismo e cristianismo em Kierkegaard: o escândalo e a loucura (Annablume, 2001), endereço eletrônico: magipa@bol.com.br
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Gianni Vattimo e Richard Rorty
O futuro da religião- solidariedade, caridade e ironia,
Santiago Zabala (org), tradução de Eliana Aguiar e Paulo Ghiraldelli Júnior. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.
O futuro da religião- solidariedade, caridade e ironia,
Santiago Zabala (org), tradução de Eliana Aguiar e Paulo Ghiraldelli Júnior. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.
O filósofo italiano Gianni Vattimo, membro do Parlamento Europeu e professor na Universidade de Turim firma cada vez mais sua obra entre nós. É comum sua presença em diversos jornais e periódicos brasileiros. Além disso, diversas de suas obras já foram traduzidas em nosso idioma. A despeito de sua vasta erudição, os autores de sua especialidade são Heidegger e Nietzsche. A partir de sua interpretação de ambos, e de uma leitura peculiar da filosofia contemporânea, Vattimo forjou o conceito de pensamento fraco como uma espécie de pensamento pós-metafísico possível para a pós-modernidade. Partindo da constatação heideggeriana do final da metafísica, o pensador italiano chega até aquilo que ele denominara como pensamento fraco. No seu entender, tal pensamento não é uma espécie de salto ou algo que oponha razão e fé, tal como pode ser observado em pensadores paradoxais como Pascal e Kierkegaard. Segundo ele, tal distinção não faria mais sentido num mundo onde, depois de Descartes e Hegel, o racionalismo já parece ter cumprido o seu papel. Com efeito, sua obra promove um elogio ao processo de secularização, compreendendo-o como algo contido no próprio âmbito do cristianismo. Seguindo a trilha de Hegel, Dilthey e de Löwith, Vattimo reafirma o conceito paulino de kénosis, isto é, do rebaixamento de Deus, como o início do processo de secularização. Portanto, antes de ser antagônico ao cristianismo, tal processo é um fruto do seu próprio desenvolvimento interno, uma espécie de desdobramento. Para ele, a secularização representa uma nova face da possível religiosidade pós-moderna. Dessa forma, ao contrário de boa parte da tradição teológica clássica, o filósofo segue a senda aberta pelos modernos e busca reintroduzir a temática da secularização, enfatizando sua importância para a articulação de uma nova proposta de filosofia da religião, tal como já foi possível observar especialmente nas suas obras Depois da cristandade e Acreditar em acreditar. Num mundo polarizado com acirrados debates religiosos, políticos e, de certa forma, propenso a receber influências fundamentalistas de toda sorte, sua obra soa como algo profundamente auspicioso.
Já o filósofo estadunidense Richard Rorty é tão ou ainda mais conhecido (e traduzido) entre nós. Seu liberalismo de esquerda e sua posição filosófica pragmatista o notabilizaram, bem como seus debates como grandes filósofos contemporâneos como Jurgen Habermas e outros. O fato a ser observado aqui é que, ao contrário de Vattimo, que busca na encarnação passada de Cristo, uma resposta para o futuro, Rorty, um ateu convicto, busca santificar a esperança futura numa sociedade mais generosa. Por isso é que, de forma não fortuita, o subtítulo da obra é solidariedade, caridade e ironia. Em outras palavras, o tema da solidariedade e da caridade são tão antigos quanto a própria história do Ocidente cristão e ambos podem ajudar os dois filósofos na articulação de suas respectivas propostas. Vattimo enxerga a solidariedade e a caridade como essências do cristianismo e do próprio processo de rebaixamento de Deus. Rorty as compreende como algo necessário para a vida em sociedade, mesmo daqueles que não acreditam num Deus. Já a ironia surge exatamente na possibilidade da articulação de um diálogo e na saudável desconfiança, tal como recomendava o velho Sócrates, de supostas verdades ou dogmas estabelecidos.
Dessa forma, o encontro entre Vattimo e Rorty, mediado por Santiago Zabala, a fim de analisar o futuro da religião é algo extremamente promissor e instigante para todos aqueles que se interessam por filosofia contemporânea. Vattimo é fiel representante da tradição hermenêutica européia e Rorty é um dos mais eminentes pensadores do pragmatismo norte-americano. Podemos ver, por intermédio das reflexões do filósofo italiano, toda uma linhagem de pensadores que começa com Schleiermacher e passa por autores como Heidegger, Nietzsche e Gadamer. Por outro lado, conseguimos enxergar, nas reflexões do pensador norte-americano, os traços de toda uma escola pragmatista permeada por autores como William James, John Dewey e outros. Com efeito, além de discutir o tema da religião, o texto promove uma espécie de ecumenismo entre duas escolas diferentes de filosofar e transmite suas principais características, apontando seus possíveis pontos comuns e suas diferenças mais marcantes. Tal enquadramento pode ser observado não apenas no artigo de Rorty, denominado Anticlericalismo e Ateísmo, mas é igualmente perceptível nos textos do seu tradutor, Paulo Ghiraldelli Júnior (Pragmatismo e hermenêutica) e de Santiago Zabala (Uma religião sem teístas e ateístas). Os demais artigos que formam o livro são A idade da interpretação de Vattimo, onde o pensador retoma algumas de suas teses anteriormente expostas no artigo História da salvação, história da interpretação (da obra Depois da cristandade). O fio condutor do filósofo italiano em tal artigo é a célebre afirmação nietzschiana de que não existem fatos, mas apenas interpretações, sendo, mesmo esta sentença, uma interpretação. A partir de tal constatação de Nietzsche, Vattimo opera uma curiosa aproximação entre a história da salvação e história da interpretação, dialogando, inclusive, com alguns de seus principais expoentes como Schleiermacher e Gamader. Por fim, o diálogo entre Rorty, Vattimo e Zabala (Qual é o futuro da religião após a metafísica?) fecha o livro e debate sem, contudo (e felizmente), encerrá-lo.
Por todos estes motivos, o livro é altamente recomendável. A edição e a tradução da obra receberam um primoroso cuidado dos editores e tradutores brasileiros. Oxalá que diálogos tão fecundos possam sempre se fazer presentes entre nós.
Marcio Gimenes de Paula, doutor em Filosofia pela UNICAMP, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe, pesquisador na área de Ética e Filosofia da Religião, autor da obra Socratismo e cristianismo em Kierkegaard: o escândalo e a loucura (Annablume, 2001), endereço eletrônico: magipa@bol.com.br
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DICAS PARA LEITURA E PUBLICAÇÃO
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